Full text: 3.1924=Nr. 7 (1924000307)

14 - 
PELO MUNDO... 
I 
Dando-lhe um forte impulso, precipitou-o no seio das ondas amargas. 
EXCURSÃO MACABRA ^ 
i 
A origem da fortuna de D. Ramón So 
lares sempre fôra muito discutida ñas ter 
tulias de Ablanedo. Sabia-se que fôra co 
cheiro durante a juventude, e ninguem com- 
prehendia como conseguira amontoar somma 
tão considerável só em conduzir passageiros 
para diversos pontos da provincia. E’ certo 
que a diligencia delle era das mais commo- 
das e elegantes do logar; que os cavallos 
de tiro eram cuidadosamente escolhidos en 
tre os melhores da região; que o descuidado 
bigode e a hirsuta cabelleira lhe tinham em 
branquecido no officio, mas, que diabo 1 nós 
já não estamos em tempos de milagres., 
A multiplicação dos pães e dos peixes 
devia parecer mais natural aos bons crentes 
de Ablanedo que o insólito e repentino au 
gmento da fortuna de D. Ramón Solares. 
Nas reuniões onde sobresaiam as irmãs Lo- 
redo, pela perversidade ou elegancia no di 
zer, só se ouviam diálogos como este: 
— Mas olha, rapaz, como é que esse su 
jeito arranjou tanto dinheiro em tão pouco 
tempo ? 
— Caiu-lhe do céo, como um maná... 
— Ou faria como aquelle pandego vindo 
da America que respondeu a Affonso XII 
quando este lhe perguntou como fizera for 
tuna: Pois olhe, senhor, a principio, o ca 
pital era pequeno, mas, depois, foi tomando 
excremento... excremento... 
O que é. facto é que ninguem sabia, ao 
certo, de que manancial brotara o delicioso 
rio de ouro que atulhava os cofres de Don 
Ramón. 
De ouro era, com effeito, o pequeno arroio 
que corria para Solares desde uma triste 
noite de dezembro. Porque de moedas de 
ouro se constituía o grosso da sua fortuna, 
originada de uma macabra excursão, que ouvi 
contar por Manolin Rosal, deante de uma 
mesa do café de Mendez-Núñez. 
Quando nos sentámos á mesa daquelle café, 
envolvido, pouco a pouco, na penumbra do 
anoitecer, o pianista rrlartellava os ouvidos 
dos escassos freguezes com um simulacro de 
interpretação do «Carnaval de Veneza». Uma 
atmosphera de recolhimento e paz provinciana 
fluctúa va, como mystica nuvem de incenso, 
no café solitario, guarnecido de divans ver 
melhos e altos espelhos elipsoidaes. 
Tínhamos entrado com o proposito de fa 
zer horas para a ceia. Chovia que Deus 
dava, não podendo nó|, por consequência, 
matar o tempo com o habitual passeio pelo 
Campo de San Benito. Privados desse quo 
tidiano costume, nossas almas se dijluiam num 
vazio de indolencia, e errávamos, sem rumo 
certo, pelas viéllas tortuosas que um lugubre 
candieiro entristecia em logar de allumtar. 
A agua das goteiras, a bater na calçada, 
simulava um acompanhamento fúnebre do 
nosso tedio. Só havia o refugio de absurdos 
cafés excêntricos, onde ninguem apparecia, 
pequenos recintos onde os caixeiros, com os 
seus alvos aventaes, o negro guardanapo ao 
hombro, discutem, mal-humorados e sofnbrios. 
Em tardes assim, que desoladora e lamen 
tável nos parece a existencia provinciana 1 
Sonha-se no entanto çpm paizes de artifi 
cio, sem consistencia de cohtornos, paizes 
maravilhosos que a phantazia decora a seu 
capricho... Na provincia vive-se mais inten 
samente, nessas horas, que nos centros po 
pulosos, entre o borborinho da multidão. Por 
que a única vida nobre e digna é a vida
	        
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