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PELO MUNDO...
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o Fot Héctor Pedro Blomberg o
— Claudio !
O homem pallido estremeceu ligeiramente.
Uma mão cordial procurava a sua, e entre
o lusco-fusco do crepúsculo ambos se olha
ram com attenção.
O olhar do amigo prescrutava o aspecto
vergonhoso de Claudio. A decadencia do
companheiro da sua primeira juventude, da-
quelle Claudio Villar, precoce e brilhante de
outros dias, causou-lhe tristeza súbita.
— Vaccas magras, hein ?
Villar envolveu-o num olhar sereno. Sor-
nu com melancolia.
-— Sim... Vaccas magras... E tu Roberto ?
— Eu ? Eu estou nos sete annos das vaccas
gordas...
IA. l~A~\
Braço dado, puzeram-se a andar por ali
f’ f° ra > pela arteria principal da cidade. O
rafego do crepúsculo envolvia-os numa onda
de rumor.
Claudio explicava... Havia muitos annos que
na ° escrevia. Abandonava-se cada vez mais...
Roberto pensou vagamente em uma tra
gedia mysteriosa, a sombra de uma mulher
que houvesse passado pela vida do seu amigo.
Ginguem conhecia os detalhes da tragedia,
mas... 6
~~ Queres trabalhar ?
Claudio encolheu os hombros.
, ~~ Fundei um jornal. Preciso de um re
actor como tu. Pagar-te-ei bem. Quando que-
res começar ?
r- Quando quizeres.
Fmiraram num café. A rua redobrava nesse
idoso vae-vem do anoitecer,
j ® jornalista evocava o passado, os dias
0 Collegio Nacional, os primeiros artigos,
o primeiro livro de Claudio. Como o tempo
corre 1
— No meu jornal estarás como em tua
casa. Espero-te amanhã, ás onze da noite.
Não faltes...
Separaram-se. A cidade cantava com a
noite. Ao tomar um taxi, Roberto pensava
no seu amigo, ou, antes, na mysteriosa tra
gedia do seu amigo.
* *
No dia seguinte, Claudio procurou o car
tão que Roberto lhe dera, e que guardara
sem ao menos olhar para elle á saida do
café. O semblante cobriu-se-lhe de uma pal-
lidez mortal, mas elle reagiu e continuou
andando com passo firme, confundido na mul
tidão das ruas.
— Bataille tinha razão... O passado é um
segundo coração que sempre palpita em nós.
Súbito deteve-se, sentindo que as pernas
se lhe dobravam. Na sua frente erguia-se um
edificio de tres andares com grandes letreiros
a ostentarem o titulo do jornal.
— Deus meu I E’ aqui... Aqui...
Teve vontade de fugir. Fugiu ? Não! Não
devia despresar o gesto generoso dessa mão
cordial que se estendia para o seu abandono
e a sua miseria. Roberto acreditava nelle...
Subiu pela estreita escada com passo firme
e seguro. Um continuo surgiu das trevas de
um corredor e olhou-o com desconfiança.
Roberto tinha chegado ha dez minutos.
— Annuncie Claudio Villar...
Segundos depois o director recebia-o cor-
dialmente. Estavam num aposento do segundo
andar. O papel côr do céo, das paredes,
apparecia coberto de manchas e de rasgões.
— Estás doente ?
Os olhos cheios de affeição, de Roberto,
contemplavam solícitos, o rosto lívido de
Claudio.
— Não... Estou bem...
— Bom... Trabalharás aqui. Cedo-te este
gabinete e esta secretaria. Ninguém virá in-
commodar-te aqui. Qualquer coisa que pre
cises, aperta este botão e o José virá logo.
Os rapazes da redacção não chegam antes
da uma hora. Escreve-me um par de arti
gos sobre qualquer coisa de actualidade. Até
logo._
Deixou-o só.
José, o continuo, assomou á porta, conci
liador e serviçal.
— Quer café, senhor ?
— Sim. Obrigado.
Fechou a porta e sentou-se deante da se
cretaria. Abriu distrahidamente as gavetas.
Uma estava cheia de tiras de papel, em
branco, e de lapis. Na outra achou um re
volver, o revolver de Roberto, e um maço
de cigarros.
Fechou bruscamente as gavetas e levantou-
se.
— Aqui, Deus meu! Aqui!
As mãos tremulas acariciaram o papel des
collado das paredes. O passado voltava, entre
aquellas quatro paredes manchadas, na meia
noite de inverno.