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PELO MUNDO
fundo abatimento, no qual a figura de An
gelina não me deixava. Passei esse dia im-
movel numa poltrona, pensando nella. Sómente
aquelles que amaram podem comprehender o
tedio que se apodera da alma depois de um
desses fracassos.
O crepúsculo desceu lentamente sobre a ci
dade. As ruas illuminaram-se. Da minha ja-
nella vi o jardim encher-se de sombras e as
gallinhas de uma casa visinha entrarem no
poleiro e os passarinhos voarem as arvores
escondendo-se entre a folhagem. O céo de um
azul absoluto no norte, no poente era todo
purpurino.
Sentei-me á mesa e comi sem appetite;
del uina vista d’olhos nos jornaes e sai. Dez
minutos depois entrava na casa de meus tios.
Encontrei Angelina sentada numa «chaise-lon-
gue» com um livro de versos na mão, numa
sala contigua á sala de jantar. Só ao avis
taba profunda emoção me agitou. Os meus
tios estavam rezando no oratorio. A nossa
conversa versou, como era natural, sobre o
acontecimento da vespera. Angelina estava ra
diante. Os seus olhos brilhavam esplendidos
e os seus labios se entreabriam como no
desejo de beijos. Era arrebatadora na sua
toilette rosa e ouro e seu cabello maravilhoso.
Corífessou-me que um rapaz da alta socie
dad^: de Buenos-Ayres lhe havia feito uma
declaração apaixonada. Não teve escrúpulos
de informar-me o que eu já sabia, e com
voz emocionada me repetiu o seu dialogo
com Inzanrralde, (mostrando mais sympathia por
elle que eu imaginava. Estava na edade de
casar-se e Inzanrralde reunia condições exce-
pcionaes: era rico, elegante e tinha deante
de si futuro brilhante. Se se amassem, se
riam felizes. Que mais podia esperar V Enle
vada nu'ma especie de sonho disse-me que a
declaração de Inzarranlde havia despertado
nella emoção extraordinaria. Como a vida pa
recia cheia de encantos! Quantas sensações
agradaveis experimentava, deixando-se levar
por essas embriagadoras e estranhas emoções.
Tudo falava de amor em torno delia: o livro,
a natureza, o canto dos pássaros; tudo se
lhe antolhava luminoso.
A chegada de don Jacob e de sua mulher,
fez mudar o thema da conversa; porém como
a minha tia queria me contar as visitas que
havia feito de dia e don 'Jacob enredar-se
na questão do divorcio, pretextei urgencia e
' fui-me embora.-
Entretanto, Angelina, os olhos enlevados, pa
recia haver-se entregue aos seus sonhos que
a julgar pelos sorrisos que se desenhavam
nos seus labio® e a agitação de seu seio, de
viam ser deliciosos.
Quanto a mim, atravessava uma crise. As
ideias entrechocaram-se no meu cerebro im-
pedindo-me tomar qualquer decisão. Achava-
me sob uma impressão semelhante a que ex
perimentaria um homem presenciando impo
tente, ao espectáculo de sua própria ruina. Dos
labios da mulher que adorava ouvia a con
fissão de seu amor em termos que me obri
gavam' a occultar no fundo da alma os meus
sentimentos. Estava acabrunhado, aniquilado
sob o golpe esmagador, e apezar disso tive
a coragem de felicitar Angelina antes de me
retirar.
Passei muito tempo sem voltar á casa de
meus tios. Na verdade as minhas visitas não
tinham mais razão de ser. Inzanrralde oc-
cupava o meu logar.
V
E excusado, querido amigo, proseguir a nar
ração desta triste historia de amor. Só Deus
sabe as dôres que padeci e as anciedades
em que vivi desde que me nasceu esse amor.
Passaram-se sómente seis mezes depois do
casamento de Angelina. Tive la triste obri
gação de presencial-o. Vi-a encaminhar-se
muito seria para o altar crivado de luzes como
nas grandes solemnidades da egreja. A musica
enchia de sonoridades a 'nave e penetrava nas
almas. Sob o véo branco, o seu cabello e os
seus olhos sdntillantes mais negros pareciam.
Dar-se-ia que p seu corpo desapparecia sob
a toilette candidçu e a corôa de flores de la
ranjeira, um perfume de castidade se evo-
lava delia e pairava no templo. Nunca a VI
tão linda nem cria amal-a tanto. Observava
ancioso, confundido na concorrencia compa
cta de convidados, os seus movimentos, os
seus sorrisos.
Quando o sacerdote de vestes recamadas de
ouro, levantou a mão para abenço-al-os não
pude 'conter um soluço. Depois da cerimonia
não fui como os outros para- sua casa. Pa
recia que a minha dôr estava impressa no
meu rosto, que ia ser a nota triste naquella
festa de esperança e de juventude. Fiz parar
um carro e dei ao cocheiro a direcção de
Palermo. Anelava pelo repouso e a solidão. O
luar reflectia-se no lago como num espelho
movediço: resvalava sobre as ondulações pra
teadas e nacaradas da aguá e coávã-se âtrã-
vés o arvoredo. Andei errante como uma som
bra pelas alamedas, atrozmente martyrisado
por meus pensamentos. Desejava morrer, des-
appardcer para sempre no fundo daquella agua
que rebrilhava tíeante de meus olhos e parecia
attrair-me com o seu murmurio tremulo e
cambiantes esplendores. Porém a espertança
fugaz de que talvez tudo ainda não se havia
consummado me fez recuar horrortsado.
Assim passei aquella noite duplamente fu
nesta, e assim : passei outras mais. Agora pro
curo. o esquecimento e resignação -na arte
que se não pôe termo a minhas penas, sua-
visa-as. Pusilânime e acanhado, vi ruir deante
de meus olhos attonitos a minha visão de
felicidade. E a visão se afastou lentamente,
com passo lento, com as suas mãos de lyrio,
com o seu cabello de noite. Como a havia
amado! Meu Deus! Com que beatitude terna
haveria participado de sua vida! Com que cega
obediencia Haveria acatado os seus mais ab
surdos . çaprichos, a sua vontade inteira > E
ainda se ella fosse feliz... porém, não, não
o é, desgraçadamente.
Hontem a fui visitar e acolheu-me com
um dos sorrisos só de'lla. Uma ligeira palli-
dez se indicava no seu rosto. Trazia um pen
teador de setim branco, com faixa côr de
rosa á cintura.
Estranhava não me vêr mais a mlude e
me exprobou docemente havel-a esquecido.
Mencionou o marido com termos affectuosos;
porém qualquer cousa, um não sei quê, me
dizia que ella não era feliz.
Pensava ir a -Cordova. A. vida nas mon
tanhas era deliciosa, encantadora a contem-