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PELO MUNDO...
Outubro de 1926
a be¡j a r... (toma de súbito as ligaduras com
que fizera o curativo a Humberto) Não,
não foi sonho, não... certamente foi... o seu
sangue, o seu sangue.
(Aperta-as chorando no coração).
(Bate á porta o pae de Maraca).
O pae — Abre, Maruca, abre depressa
que o vento sopra, com força, e a chuva
açoita desalmadamente.
‘Maruca — Já vou, meu pae.
O pae (cantando):
Trago meu corpo ensopado
Molhado até o juizo
Venho moldo o cansado
E venho morto de riso.
Maruca [
Maruca — Já vou meu pae. (Tira os
restos dos trapos e os frascos, esconde-os
dentro .da gaveta d\a atesa, limpa os olhos
e alisa o cabello). Pobre pae, não quero
que saiba de nada!
O pae — Faz um frio e um ventinho!...
(cantando) e venho morto de riso.
Maruca — Elle que não mote nada que
ignore tudo, seria matal-o na edade delle.
O pae — Oh! Maruca!
Maruca (abrindo) — Entre, meu pae.
(E' o pae de Maruca muito Velho fá,
todo branco o cabello, e anda com Can
saço e corcovando. Não lhe Hão tirado os
annos a alegria da alma nem da cara, e ri
sem cessar).
O pae — Minha filha! (Abraçando-a e
beijando-a).
Maruca — Meu pae, meu pae!... (beija-
lhe as mãos e a testa).
O pae — Estás muito alterada e ardendo,
que é que tens?
Maruca — Estive a ler ao pé da cha
miné durante tres horas...
O pae (rindo) — Lendo? O quê, Ma
ruca!... Lias o RobimsOn ou a Gulliver. Dir-
te-ei que a mim, fala-me mais ao coração
e convence-me mais Robinson; Gulliver an
tolha-se-me phantastico.
Maruca —■ Estava lendo a Robinson. Mas
o senhor veiu só pelo monte, com esta
noite ?
O pae — Acompanhou-me o Manuelinho
em seu burrico e deixou-me á entrada do
horto.
Maruca (tirando-lhe o capote) — Vem mo-
Ihadinho... chegue-se para aqui, junto ao
lume. Quer tomar alguma coisa?
O pae — Acabó d emeremdar no povoado,
mas estou com vontadinha. Quando a gente
é rapaz tem 1 um tal dente...
Maruca — Tenho biscoitinhos.
O pae — Que! ha biscoitos? Poe-mos na
frente, Maruca. Nao sei o que tem as tuas
mãos que dão um sabor a esses biscoitos...
os do povoado, em verdade, sabem-me a
terra.
Maruca — Pois então, venha o senhor.
’(Ajuda-o Maruca a sentar-se a mesa, no
mesmo logar que occupava Humberto; põe-
lhe um guardanapo que lhe ata ao pes
coço e senta-se ao\ seu lado depois de lhe
por deante os biscoitos).
O pae — Isso, assim, muito bem. Têm
bôa cara. (Come um delles). E os pés tam
bém os têm bons.
Maruca — E lá pelo povoado, que se
sabe da batalha, meu pae?
O pae — Pois ma verdade, não se sabe
ao certo quem triumphou. Creio que houve
muitos mortos, e tenho muita pena delles.
Se eu tivera braços e pernas, e se tivera
olhos! Mas já não tenho nada, já não
posso fazer pontaria e quasi não vejo. ..
(rindo).
Maruca — Houve muito sangue?
O pae — Sim, creio que houve, vi che
garem em carros muitos feridos ao povoado.
Agora mesmo, ao subir a encosta, eu e o
Manuelinho encontramos um official e al
guns soldados que baixavam com Um fe
rido, ferido ou morto, vae lá tu sabel-o,
numa maca. Eu e o. Manuelinho nós pu
semos de lado para deixar o caminho des
impedido, tiramois os barrets e rezamos-lhe
um Padre-Nosso. O pobrezinho que ia den
tro era um martyr da patria. Olha, Ma
ruca, fiquei triste por elle, sem o conhecer.
Os tambores e os passos dos soldados fa
ziam ao mesmo tempo: pan, pan, pan,...
até triste se me afiguraram os ares dos
soldados que se afastavam, cantando... Po
bre do que ia na maca!... deve de ter caido
morto ou feridoi nalguma quebrada do monte.
Maruca — Sim, talvez, coitadinho!...
O’ pae, e como passou lá pelo povoado ?
O pae — Muito bem, tenho que te contar
muitas coisas boas, mu;to boas.
Maruca — Muito boas!.
O pae — Pois tu vaes ver. Não te as
quero dizer desde já, pois se tas digo, se
tas digo, eras muito capaz de as querer
ir semear ¡inmediatamente. Mas que palra-
dor eu sou! Pois nãOt te digo! Nada, agora
já, nao ha remedio (com muita alegría).
Já comprei as sementes! As das roseiras
de orizaba, as dos cravos e margaridas f
Maruca (simulando alegría) — E? sério,
meu pae ? Que bom! E o senhor trouxe-as ?
O pae — Claro que sim. Paguei caro,
mas trouxe-as. Toma-as; trazem os nopies
escriptos nos papeis. Não as mistures, que
fazias uma bôa! Nascia um disparate. Ima
gina que nasça uma rosa junto de um cravo,
estávamos bem arranjados. Não se podem
vèr. Dizem que a rosa tem dispiques e
rancores com o cravo, por questão de raça.
Isto contam' as más linguas, sabes? Mas é
mentira, mentira muito grande, que eu bem
sei i E’ o caso de ciurnes; porque uma ma
nhã apaixonou-se a rpsa pela tulipa, ques
tão de gostofs, e desprezou ao cravo.
Maruca — Por que não vae meu pae
descansar? Já é muito tarde...
O pae — Eu, descansar? Está feito! Tu
sim, é que me pareces estar com muito
somno...
Maruca — Estou; cansei-me muito pela
horta; ha tanto que fazer nella.
O pae —• Estou morto por semear essas
sementes. Vaes ver quando nascerem! Se
vivesse tua mãe, que gosto não teria com
ellas! Sonhava com as flores. Mas já se
foi, Maruca, e nós cá nos ficamos, tu e
eu, com as nossas flores, que tristes me
(Contimia na pag. 110)