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Novembro de 1927
PELO MUNDO...
Um anniuersarin
:i
Livry, nos dias da sua mocidade ja dis
tante, tinha sido rico, mas, por culpa feua
e dos outros, tinha deixado de o ser. Não
obstante, tinha continuado a ser homem de
sociedade, e para conservar as appareindas,
apezar do ridiculo rendimento que lhe ficara
(apenas o sufficiente para não morrer de
fome), sabia impôr-se a toda a sorte de pri
vações.
Morava num cochicholo, apenas mobiliado,
mas numa casa elegante, cujo porteiro, bem
ensinado, tinha ordem Me dizer que tinha
saido, se álguem perguntava por elle.
Seu alimento reduzia-se ao estrictamente
necessário e era elle mesmo quem o prepa
rava fazendo no aquecedor de kerozGne,
sopas abundantes que lhe duravam para tres
ou quatro refeições. Uma vez por mez, viam-
no jantar em um restau
rante chic. Suas roupas,
pouco numerosas, eram
objecto da sua mais ar
dente solicitude.
Privava-se de fumo, de
aquecimento e acé de luz;
mas se o tempo estives
se muito feio, podia per-
mittir-se o luxo de to
mar um auto para fazer
qualquer visita que o in
teressasse.
Assim Livry, apezar dos
annos que vinham che
gando e da carestia da
vida, defendia com uma
luta encarniçada a sua po
sição e o seu prestigio
na sociedade.
Eram quatro horas da
tarde, guando Livry apre
sentou-se em casa'da sra.
Foutbonne, que reabria
os seus salões, depois de
uma ausencia de varias
semanas. Ao entrar no
palacete da avenida. Henr¡
Martin, experimentou a
intima alegria que lhe causava sempre o
luxo, e quando o creado o - conduziu até
ao salão, onde Clara se achava sósinha, foi
tomado por aquella emoção 3ôoe e ap mes
mo tempo .cruel, que sentia desde havia
muitos annos, todas as vezes que a via.
Clara sempre formosa, com o seu rosto
sem fugas e os seus cabellos louros que ella
deixava faceiramente embranquecer, estava
sentada em uma bergère e acolheu Livry
com o seu habitual e affectuoso sorriso-.
Livry beijou-lhe a mão com respeitosa ter
nura e sentou-se não muito longe delia.
Conversaram. A sra. Foutbonne falou na
sua filha recem-casada, a quem o marido
levára para as colonias. Depois queixou-se
das suas amigas que, apezar do seu convite,
a tinham deixado sósinha, e agradeceu a
Livry, ter vindo fazer-lhe um pouco 'de
companhia.
Este olhava para ella, respondendo apenas
por monosyllabos, e, de repente, disse:
— Sabe que hoje fazem vinte e cinco
annos que nos conhecemos ?
Achando inútil recordar uma data tão afas
tada, Clara franziu as sobrancelhas, mas logo
depois riu-se de bôa vontade.
— Que memoria terrjvel! disse fila. Tem
inteira certeza da data?
— Absoluta certeza. Foi no dia 6 de se
tembro, no castello da condessa de .Aurail;
acabava a senhora de- tratar casiamento oom
Foutbonne, e foi elle quem nos apresentou
um ao outro.
— Meu marido o estimava muito. O senhor
foi sempre o nosso melhor amigo, e de
pois que morreu o meu pobre marido, con
tinuou sempre a ser pa(ra mim um bom amigo.
E accreseentou:
— Vinte e cinco annos!... As bodas de
prata da nossa amizade.
Livry tinha os olhos
baixos. Depois olhou pa
ra Clara e "disse, com
voz ign pouco tremula::
—E sabe que ha vin
te e cinco annos que a
amo?
— Sim, sei, resnondeu
a viuva, sorriiido. Muito
frequentemente você me
dizia isso antigamente.
Lembre-se: eu tinha-o au
torizado a falar nisso,
com a condição ,que m«
fizesse as suas declara
ções em verso... Você res
pondeu que jsso era mui
to difficil e que pu que
ria caçoar, mas logo de
pois acoeitou, e liamos as
poesias em voz alta. ..
Mas, o que é, que ha?...
Por que 'toma agora esse
ar trágico ?
— Porque me lembro do
que tenho soffrido, por
que a senhora foi a úni
ca mulher a quem amei
neste mundo... a tal ponto que estive pres
tes a suicidar-me, juro-o f... E a senhora
o sabia!... Mas fingia não vêr nisso mais
do que uma brincadeira, e eu não me atre
via a falar mais claramente, com. receio
de que a senhora me expulsasse de junto
de si.
— O que eu sabia era que estava casada com
um homem excedente, que era seu amigo.
Quando elle morreu, ficára-me a minha filha
a quem tinha que educar, e, além disso,
tive sempre horror a certas mentiras, a
certas duplicidades... Mas, porque me diz
você hoje tudo isso ?
— Não sei, respondeu Livry sinceramente
Talvez porque era preciso que um dia ou
outro o dissesse. O amor occupou tanto es
paço na minha vida, que quiz, antes de
morrer, saber se a senhora o tinha com-
prehendido. E como é uma coisa já tão
distante, não receio offendel-a com as mi
nhas palavras.