SELECTA
rebanhos e do canto das cigarras, as cousas de
hoje afastam-se, sombream-se, desvánecem-se, e é a
velha Alsacia, alegre e familiar que se despojando
dos seus veos, levanta-se e sorri para mim.
* * *
Foi n’um inverno, já ha muito tempo (ha mais de
melo século) no serão das nozes, que o Friedli do
pae Steiner e a Trinóle da casa Koslach começaram
a ter umas ideias. Emquanto estalavam as cascas
das nozes e que, de costas para o fogo, os velhos
contavam historias da Africa ou da Italia, elles tro
cavam olhares, e, as suas mãos ennegrecidas pelo
descascar das nozes verdes, sentiam-se pezarosas
de se separarem á meia-noite.
Na terça-feira gorda, fizeram juntos a sorte de
schieble.
Segundo o costume, os rapazes da aldeia tinham
passado o dia a pedir de porta em porta, lenha, pa
lha e também pasteis e doces. A’ noite, o homem
de palha (o Sündebock), o manequim comico re-
cheiado de pedaços de páos resinosos, foi erguido
na praça grande. Poz-se fogo n’elle, no meio da
população reunida.
Quando elle acabou de arder, as brazas foram
ajuntadas e os rapazes dando a mão ás raparigas
saltaram por cima.
Depois foi a vez do schieble.
Quer schieblar commigo, senhorinha Trinóle ?
Justamente a mãe Steiner e a mãe Koslach olha
ram para outro lado.
Trinóle não disse que sim, mas também não
disse que não.
N(uma varinha de metal Friedli enfiou uma fina
taboinha furada no meio, approximou-a do bra-
zeiro e logo que ella se inflammou, fel-a voltear
cantando a meia voz de modo a ser comprehen-
dido só pela sua vizinha :
Roda schieb, roda schieb
Com o meu coração,
Vôa longe e diz
Se Trinéle me ama ou não.
E com um grande gesto elle atira aos ares a ta
boinha. Se ella se apagar, significa que Friedli não
deve conservar esperanças. Mas eis que a taboinha
descreve uma immensa curva, semelhante a urna
parabola de chammas de onde calle uma chuva de
falseas... De novo os olhos de Friedli e de Trinéle
encontram-se e depois desviam-se embaraçados.
* * *
Para a festa de S. Marcos os jardins revestiram-
se de flores... Atravez os campos ouvem-se arru
lhar as rolas. A primavera radiante resplandece
plenamente. No tempo de S. João, Trinéle foi ás
escondidas procurar a herva d’esse santo : isto é,
ella foi de madrugada apanhar um raminho co
berto de orvalho e, com mil cuidados, collocou-o
<' sua janella : se dentro de tres dias elle não tiver
murchado, é que talvez haja algum rapaz na aldeia
Que pense n’ella.
Ao cabo de tres dias, a herva de S. João conser
vava tudo o seu viço. Também quando, uma tarde,
riñóle que estava com a sua mãe remendando a
r oupa, viu pela janella, a mãe Steiner approximar-
se toda bem vestida com o seu corpete novo, o seu
chale de franjas e o seu grande avental de seda
preta, sentiu o coração bater com muita força e ar
ranjou um pretexto para escapulir : não era preciso
ir ver se havia ovos no gallinheiro ?...
Em breve chamam-na. Um pouco solennes, com
os olhos lacrimosos mas apezar d’isso com as caras
alegres, as duas comadres olham-na fixamente, o
que muito a embaraça, pondo-se ella a revirar entre
os dedos as fitas do seu avental.
E verdade, Trinele que o teu raminho de
S. João não murchou ?
A essa pergunta da mãe Steiner, Trinóle sentiu
o rubor subir-lhe ás faces. Assim mesmo não
poude deixar, vendo-a sorrir com um ar malicioso,
de lhe sorrir também. E de repente achou-se nos
braços da boa mulher que a abraçou com toda a
ternura murmurando:
Então e verdade que queres ser a mulher-
zinha do meu herzkãfer P
Porque sendo o mais moço dos tres filhos de
Steiner, F riedli era appellidado o herzkãfer, «o es-
carabeu do coração» da sua mamãe.
Foram chamar os maridos. Elles chegaram : o
Koslach, cordial segundo o seu costume ; o pae
Steiner, muito digno, e o compridâo do'Friedli,
tão commovido! Começaram por dar uns' aos outros
fortes apertos de mão.
E depois, Gottlich Koslach foi a sua adega bus
car uma garrafa de vinho velho e todos beberam á
saude dos noivos. Naturalmente, os Steiner foram
convidados a jantar. Como era justo, Trinóle pre
parava-se para ir ajudar a sua mãe mas manda-
ram-na embora, para longe das caçarolas. E’ um
proverbio muito conhecido que diz : «cozinheira
apaixonada salga demais a comida.»
Então emquanto as mamães trabalhavam com os
braços e a lingua, I ríñele e Friedli foram sentar-se,
de mãos dadas no velho banco do jardim. A meia
voz elles disseram-se muitas cousas; e entre outras,
Trinóle soube, o que já suspeitava talvez um pouco:
que se o seu raminho de herva de S. João ficou
verde, é que, todas as noites Friedli, com o risco de
quebrar os ossos, trepava á janella para renoval-o...
No dia seguinte, Friedli trouxe um annel de
prata que enfiou no dedo da sua futura... A velha
mostra-me o seu dedo annelar nodoso, onde brilha
um circulo de prata já um pouco baço:
Este mesmo, senhor, que aqui está vendo.
* * *
Casaram-se depois da colheita.
^ — Ah ! foi uma boa festa. Na manhã do grande
dia, depois de uma noite um pouco agitada, — o
senhor comprehende, não é ?... — Trinóle foi acor
dada por uma salva de fusilaría : eram os cavalhei
ros de honor, todos enfeitados com borlas e fitas
que descarregavam os seus velhos bacamartes no
pateo e acclamavam a noiva. Então Trinóle levan-
tou-se e auxiliada por suas amigas que acudiam
para vestil-a, enfiou o seu vestido de casamento :
tudo era novo, desde as meias compridas de linho
branco feitas por Salomé Barthel, até o esplendido
vestido de seda preta, muito direito, pendurado em
um prego no tecto para não se amarrotar.