SELECTA
alto, aos doze annos, n’um antigo patacho — o
Joven Princeza. A viagem era para os Estados-
Unidos e, mettido o carregamento, o navio ar
rancou, uma manhã, por um ardente e dourado
Janeiro.
A’ barra, quando o casco apróou para o norte,
com todo o panno ao vento, e o mar abriu-se,
n’uma vastidão infinita e deserta, para além, e elle
viu, popa a fóra, á distancia, ir pouco a pouco es
morecendo a cidade, as serras e a outra banda em
frente, com a sua costa risonha, as curvas brancas
das praias onde a sua infancia cantara e resplan-
decéra desceu-lhe urna immensa melancholia,
urna nostalgia da familia, dos que deixára alli, e
desatou a chorar sobre a borda, n’uma intensa
saudade inexprimível, que lhe apunhalava o peito.
Mas a faina rija de bordo estancou, dentro em
pouco, esses sentimentos, e Santos voltou á sua
tempera resistente, de menino afeito a trabalhos,
no meio do rumor das manobras, sob o ranger
da cordoalha sonora, ñas amuradas balouçantes
que as vagas lambiam. Ao anoitecer, toda a longa
costa saudosa perdera-se de vista, e o mar e o céo
foram-se cobrindo ricamente de um setim azul
ferrête, oude apontava, n’uma vasta e profusa ru-
tilação, a cravação palpitante das estrellas...
Foi n’essa primeira viagem que conheceu todos
os furores do mar bravio, quasi perdendo a vida.
Havia já tres semanas que o navio velejava feliz,
desde que deixára o Rio. Porém, uma noite, n’um
mar agitado e crivado de ilhas,chamado pelo ca
pitão, das Antilhas, um tufão de sudoeste cahiu
de repente, sob uma trovoada sinistra. A principio
o patacho aguentou-se valentemente nas aguas,
em meio dos vagalhões que o cobriam. Mas um
mastaréo rebentou inesperadamente, n’uma rajada
mais rija. Houve um clamor, imprecações e gri
tos, e logo após, n’um tumulto dantesco, a sub
mersão do navio. Toda a companha, a bem dizer,
perecera, salvando se apenas elle e dois compa
nheiros, no fim de uma batalha tremenda, a que
teriam de succumbir, si não fóra a passagem, no
outro dia, de um lugar inglez, que ia para o Mis
sissipi... Voltara depois ao Brasil, continuando de
novo a sua vida de embarcadiço, na bohemia do
mar, ora em navios de véla, ora a soldadas por
mez, em vapores. Fôra também, durante muitos
annos, hoteleiro, no trafico do porto, e empregá-
ra-se longamente na pescaria, quer fóra da barra
quer nas aguas da bahia. Agora, já velho, com
oitenta annos, é mestre de rêdes, guia todos na
grande arte e vive d'essas pequenas parcellas que
ainda lhe dá o mar. A sua vida presente é ma
drugar, levantar-se ainda escuro, na disciplina de
marítimo, aggravada pela insomnia de velho, to
mar a sua bôa caneca de café na cosinha, olhar a
criação no terreiro e fazer algumas braças de
rede, logo ás primeiras horas do dia.
Sentado n’um mocho, no vão de uma janella,
o cesto dos novelos de fio ao pé, as primeiras
malhas presas de um prego no portal, voltado
para a luz, com o seu velho cachimbo nos bei
ços, fumegando e cuspindo, Santos move conti
nuamente a agulha de madeira com uma destreza
de artista. E o bello tecido louro, cheirando a
gravatá, alonga-se e avulta, de instante a instante,
SUPPLEMENTO
por uma multidão de laçadas que elle faz e a *'
ranea á malheira polida, ora vestindo-a, ora des
pindo a de fios. Depois, deixando o trabalho, en
caminha-se para o mar, para o ponto costumado,
um alto de restinga, de onde trilhos de cabra,
feitos a pés, descem até a praia, em que canôas
repousam, puxadas, humedecidas pela maresia.
D’ahi, d’esse alto, que é o seu dominio, o Obser
vatorio, fumando e pairando arrastadamente, nada
lhe escapa — urna véla que passa, lanchinhas offe-
gantes, passaros, a cor do mar, das nuvens, os
Ionges neblinosos e vagos...
Em volta d’elle reunem-se logo os pescadores
e roceiros vadios, para lhe ouvirem as pittorescas
historias de viagens e os bons conselhos sobre a
navegação e as pescarias. Porque o Mestre de
Rêdes é infallivel no prognostico do tempo ef az
previsões de dois a tres dias.
Quando alguém quer fazer com segurança
uma viagem, consulta-o como a um oráculo. O
velho responde convicta e peremptoriamente:
_—Pode ir á cidade, tem quatro horas; antes
d’isso o tempo não cahe.
E’de admiravel exactidão em cousas maríti
mas. Conhece bom numero de paragens littoraes
do globo, e retem no espirito, em desenhos vivos
e nítidos, paysagens e marinhas encantadoras de
varios paizes, e de toda a costa do Brasil até 0
Maranhão. As aguas e o littoral rendilhado da
bahia do Rio, não têm para elle um só ponto
desconhecido, desde as enseadas, os canaes, ate
as ilhas e os rios. De longe, de um só golpe de
vista, assignala os lugares, caracterisa-os, estabe
lece a distancia. Nunca se engana.
Mas a nota mais viva, frisante, característica,
do Mestre de Rêdes, é o pendor, a obsiinaçã®
pela critica, em materia da grande arte náutica e
em todas as cousas. Tem a observação pessimista
para a universidade do existente, um pessimism®
de velho, de profissional antigo, julgando a sua
épocha e a sua pessóa superiores á actualidade-
E’ incoercível e inexorável na analyse universa',
sempre descontente, ralhando sempre, na sinceri
dade da sua nobre paixão candida, na despreo
cupação da sua alma simples. E exerce a critica
longa e constantemente, a proposito de tildo, de
um modo infinito.
Ora, é um escaler que passa, cantando ñas t£>-
leteiras:
— Não vae lá nem em duas horas... Vão esfre
gando, vão esfregando... Olha o sebo n’esse P at! '
lhãoe n’essa quilha!
Si um boL corre á véla: — « Nem bolinar j*
sabem!» ou um vapor singra para a barra-
— « Chega-te bem ao costão e o resto saberás- ’
E firmando avista: — « Não conheço o casco,
mas é francez, é dos novos. » E franze ironica
mente os hombros, porque tem um desdeni P £ i° s
steamers novos.
Todo o dia vive fallando para si, resmungando,
resmoendo as próprias criticas...
Os navios velhos, os conhecidos, são para elle
uma bôa amizade, porque muito bem os conhece-
E mirando amorosamente o Trent: — « E’ üta
passaro, um espagão. Vejam aquellas linhas,
aquellas sahidas d’agua. Aquillo, nem mu peixe-’’