Full text: 1.1915,18.Aug.=Nr. 12 (1915000112)

SELECTA 
alto, aos doze annos, n’um antigo patacho — o 
Joven Princeza. A viagem era para os Estados- 
Unidos e, mettido o carregamento, o navio ar 
rancou, uma manhã, por um ardente e dourado 
Janeiro. 
A’ barra, quando o casco apróou para o norte, 
com todo o panno ao vento, e o mar abriu-se, 
n’uma vastidão infinita e deserta, para além, e elle 
viu, popa a fóra, á distancia, ir pouco a pouco es 
morecendo a cidade, as serras e a outra banda em 
frente, com a sua costa risonha, as curvas brancas 
das praias onde a sua infancia cantara e resplan- 
decéra desceu-lhe urna immensa melancholia, 
urna nostalgia da familia, dos que deixára alli, e 
desatou a chorar sobre a borda, n’uma intensa 
saudade inexprimível, que lhe apunhalava o peito. 
Mas a faina rija de bordo estancou, dentro em 
pouco, esses sentimentos, e Santos voltou á sua 
tempera resistente, de menino afeito a trabalhos, 
no meio do rumor das manobras, sob o ranger 
da cordoalha sonora, ñas amuradas balouçantes 
que as vagas lambiam. Ao anoitecer, toda a longa 
costa saudosa perdera-se de vista, e o mar e o céo 
foram-se cobrindo ricamente de um setim azul 
ferrête, oude apontava, n’uma vasta e profusa ru- 
tilação, a cravação palpitante das estrellas... 
Foi n’essa primeira viagem que conheceu todos 
os furores do mar bravio, quasi perdendo a vida. 
Havia já tres semanas que o navio velejava feliz, 
desde que deixára o Rio. Porém, uma noite, n’um 
mar agitado e crivado de ilhas,chamado pelo ca 
pitão, das Antilhas, um tufão de sudoeste cahiu 
de repente, sob uma trovoada sinistra. A principio 
o patacho aguentou-se valentemente nas aguas, 
em meio dos vagalhões que o cobriam. Mas um 
mastaréo rebentou inesperadamente, n’uma rajada 
mais rija. Houve um clamor, imprecações e gri 
tos, e logo após, n’um tumulto dantesco, a sub 
mersão do navio. Toda a companha, a bem dizer, 
perecera, salvando se apenas elle e dois compa 
nheiros, no fim de uma batalha tremenda, a que 
teriam de succumbir, si não fóra a passagem, no 
outro dia, de um lugar inglez, que ia para o Mis 
sissipi... Voltara depois ao Brasil, continuando de 
novo a sua vida de embarcadiço, na bohemia do 
mar, ora em navios de véla, ora a soldadas por 
mez, em vapores. Fôra também, durante muitos 
annos, hoteleiro, no trafico do porto, e empregá- 
ra-se longamente na pescaria, quer fóra da barra 
quer nas aguas da bahia. Agora, já velho, com 
oitenta annos, é mestre de rêdes, guia todos na 
grande arte e vive d'essas pequenas parcellas que 
ainda lhe dá o mar. A sua vida presente é ma 
drugar, levantar-se ainda escuro, na disciplina de 
marítimo, aggravada pela insomnia de velho, to 
mar a sua bôa caneca de café na cosinha, olhar a 
criação no terreiro e fazer algumas braças de 
rede, logo ás primeiras horas do dia. 
Sentado n’um mocho, no vão de uma janella, 
o cesto dos novelos de fio ao pé, as primeiras 
malhas presas de um prego no portal, voltado 
para a luz, com o seu velho cachimbo nos bei 
ços, fumegando e cuspindo, Santos move conti 
nuamente a agulha de madeira com uma destreza 
de artista. E o bello tecido louro, cheirando a 
gravatá, alonga-se e avulta, de instante a instante, 
SUPPLEMENTO 
por uma multidão de laçadas que elle faz e a *' 
ranea á malheira polida, ora vestindo-a, ora des 
pindo a de fios. Depois, deixando o trabalho, en 
caminha-se para o mar, para o ponto costumado, 
um alto de restinga, de onde trilhos de cabra, 
feitos a pés, descem até a praia, em que canôas 
repousam, puxadas, humedecidas pela maresia. 
D’ahi, d’esse alto, que é o seu dominio, o Obser 
vatorio, fumando e pairando arrastadamente, nada 
lhe escapa — urna véla que passa, lanchinhas offe- 
gantes, passaros, a cor do mar, das nuvens, os 
Ionges neblinosos e vagos... 
Em volta d’elle reunem-se logo os pescadores 
e roceiros vadios, para lhe ouvirem as pittorescas 
historias de viagens e os bons conselhos sobre a 
navegação e as pescarias. Porque o Mestre de 
Rêdes é infallivel no prognostico do tempo ef az 
previsões de dois a tres dias. 
Quando alguém quer fazer com segurança 
uma viagem, consulta-o como a um oráculo. O 
velho responde convicta e peremptoriamente: 
_—Pode ir á cidade, tem quatro horas; antes 
d’isso o tempo não cahe. 
E’de admiravel exactidão em cousas maríti 
mas. Conhece bom numero de paragens littoraes 
do globo, e retem no espirito, em desenhos vivos 
e nítidos, paysagens e marinhas encantadoras de 
varios paizes, e de toda a costa do Brasil até 0 
Maranhão. As aguas e o littoral rendilhado da 
bahia do Rio, não têm para elle um só ponto 
desconhecido, desde as enseadas, os canaes, ate 
as ilhas e os rios. De longe, de um só golpe de 
vista, assignala os lugares, caracterisa-os, estabe 
lece a distancia. Nunca se engana. 
Mas a nota mais viva, frisante, característica, 
do Mestre de Rêdes, é o pendor, a obsiinaçã® 
pela critica, em materia da grande arte náutica e 
em todas as cousas. Tem a observação pessimista 
para a universidade do existente, um pessimism® 
de velho, de profissional antigo, julgando a sua 
épocha e a sua pessóa superiores á actualidade- 
E’ incoercível e inexorável na analyse universa', 
sempre descontente, ralhando sempre, na sinceri 
dade da sua nobre paixão candida, na despreo 
cupação da sua alma simples. E exerce a critica 
longa e constantemente, a proposito de tildo, de 
um modo infinito. 
Ora, é um escaler que passa, cantando ñas t£>- 
leteiras: 
— Não vae lá nem em duas horas... Vão esfre 
gando, vão esfregando... Olha o sebo n’esse P at! ' 
lhãoe n’essa quilha! 
Si um boL corre á véla: — « Nem bolinar j* 
sabem!» ou um vapor singra para a barra- 
— « Chega-te bem ao costão e o resto saberás- ’ 
E firmando avista: — « Não conheço o casco, 
mas é francez, é dos novos. » E franze ironica 
mente os hombros, porque tem um desdeni P £ i° s 
steamers novos. 
Todo o dia vive fallando para si, resmungando, 
resmoendo as próprias criticas... 
Os navios velhos, os conhecidos, são para elle 
uma bôa amizade, porque muito bem os conhece- 
E mirando amorosamente o Trent: — « E’ üta 
passaro, um espagão. Vejam aquellas linhas, 
aquellas sahidas d’agua. Aquillo, nem mu peixe-’’
	        
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