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OS CANABS
DE BRUGES
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V
(Des. de Antonio Carneiro)
JOÂO DE BARROS
é, entre os poetas portuguezes, urna ex-
cepcão. A sua Musa, enthusiasta e ar
dente, canta a alegria da vida, a ancie-
dade dos destinos, a juventude, a forca,
a gloria, o que a não impediu entre
tanto, de cantar os canaes de Bruges nos
bellos versos que ornam esta pagina.
A somnolencia
A somnolencia doentia dos canaes,
Tem-me perdidas horas junto ao caes,
Horas perdidas, sem amor, sem violencia,
Horas de cinza, agonisantes, sempre eguaes,
Horas de chumbo — como a agua dos canaes. . .
Agua parada,
Agua viscosa, agua soturna, — agua quasi sem cór,
Onde a névoa adormece, onde o silencio nada :
Aves que passem n’uma lenta revoada,
Barcos levados no balanço da remada,
São como sombras de cansaço e de torpór. . .
Miram-se as casas velhas c severas
Na agua adormecida ;
Olho as janellas — e não ha signal de vida. . .
Nunca floriram primaveras ou chymeras
N’aquella paz adormecida. . .
Nunca ninguém amou ali : o nevoeiro,
O nevoeiro que arrefece.
Ia subindo, tão subtil e tão ligeiro,
Que entorpecia os labios frios n’uma prece,
Que estrangulava os beijos moços, e vencia
O amor e a alegria.
A
AA
W
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A
Como elle paira sobre a agua : a pouco e pouco
Ennubla os longes da paysagem. . .
Immobilisa todo o gesto de coragem.
Se eu gritar alto ha-de o meu grito sair rouco.
Tudo é vaga illusão, tudo é miragem. . .
A vida morre. . . A vida pára. . . Eu nem a sinto
Balbuciar a sua aspiração.
N’este silencio — o mundo torna-se indistincto,
Vélam-se os olhos de fitar a cerração. . .
E se te fallo, meu Amor, decerto minto
Porque nem oiço o proprio coração. . .
E treme a gente do impossivel captiveiro
Entre o Céo triste, a agua triste, a agua lenta.
Sem horizontes, sem Sol claro, sem tormenta,
Quebrar as azas contra o nevoeiro,
Ser a energia que nada tenta ? . . .
Mas, para além
— Para além d’esta nevoa que tu sondas
Com olhos d'avidez —
Para além ha o mar, o mar das ondas,
E sobre o mar o vento alegre, a embriaguez
D ir sempre mais além !
O mar doido, o mar forte, o mar aberto
A todos os caminhos. . .
O mar livre, o mar só como um deserto,
O mar do sonho, das sereias e golphinhos,
O mar tranquillo, o mar em furia, o mar incerto !
E, pelo mar,
Vão os navios, vac o mundo, anciosamente :
De Sul a Norte, d’Oriente a Occidente,
Vão os navios, palpitantes, a arquejar
Cheios de gente !
Vão tão velozes, tão frementes d’anciedadc
Que sob os novos céos e os novos soes
Que os illuminam no seu rumo,
Ninguém lembra com magua e com saudade
A luz acolhedora dos pharoes,
Os portos ébrios de barulho e fumo. . .
Ah ! esses portos ruidosos, a floresta
Das chaminés, das velas e dos mastros,
Os marujos em faina, o carregar dos lastros,
As bandeiras batendo ao vento, a febre, a festa
Das naus que sáem do estaleiro - e logo aproam
Ao Céo azul onde as gaivotas vôam. . .
N’elles a vida
E urna eterna, infatigada espr ança !
N elles morre esta agua entorpecida
Na vaga quente e forte
Sobre a qual parte, sobre a qual se lança
Para o desejo, para a gloria ou paia a morte —
Toda a alma sedenta de mais vida !
E um dia, breve,
Um dia hei-de partir de lá, tambem,
Partir d' animo leve
Para o Sol, para o mar e para além
D este silencio que me prende a alma inteira,
Horas perdidas, junto ao caes.
Hei-de partir sorrindo, embora leve
Nos meus olhos, em fogo a tristeza dos teus,
E embora fiques só, minha illusão primeira,
Entre a soturna somnolencia dos canaes
E entre a névoa a acenar-me o teu ultimo adeus. . .