Full text: 1.1915,25.Aug.=Nr. 13 (1915000113)

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OS CANABS 
DE BRUGES 
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V 
(Des. de Antonio Carneiro) 
JOÂO DE BARROS 
é, entre os poetas portuguezes, urna ex- 
cepcão. A sua Musa, enthusiasta e ar 
dente, canta a alegria da vida, a ancie- 
dade dos destinos, a juventude, a forca, 
a gloria, o que a não impediu entre 
tanto, de cantar os canaes de Bruges nos 
bellos versos que ornam esta pagina. 
A somnolencia 
A somnolencia doentia dos canaes, 
Tem-me perdidas horas junto ao caes, 
Horas perdidas, sem amor, sem violencia, 
Horas de cinza, agonisantes, sempre eguaes, 
Horas de chumbo — como a agua dos canaes. . . 
Agua parada, 
Agua viscosa, agua soturna, — agua quasi sem cór, 
Onde a névoa adormece, onde o silencio nada : 
Aves que passem n’uma lenta revoada, 
Barcos levados no balanço da remada, 
São como sombras de cansaço e de torpór. . . 
Miram-se as casas velhas c severas 
Na agua adormecida ; 
Olho as janellas — e não ha signal de vida. . . 
Nunca floriram primaveras ou chymeras 
N’aquella paz adormecida. . . 
Nunca ninguém amou ali : o nevoeiro, 
O nevoeiro que arrefece. 
Ia subindo, tão subtil e tão ligeiro, 
Que entorpecia os labios frios n’uma prece, 
Que estrangulava os beijos moços, e vencia 
O amor e a alegria. 
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Como elle paira sobre a agua : a pouco e pouco 
Ennubla os longes da paysagem. . . 
Immobilisa todo o gesto de coragem. 
Se eu gritar alto ha-de o meu grito sair rouco. 
Tudo é vaga illusão, tudo é miragem. . . 
A vida morre. . . A vida pára. . . Eu nem a sinto 
Balbuciar a sua aspiração. 
N’este silencio — o mundo torna-se indistincto, 
Vélam-se os olhos de fitar a cerração. . . 
E se te fallo, meu Amor, decerto minto 
Porque nem oiço o proprio coração. . . 
E treme a gente do impossivel captiveiro 
Entre o Céo triste, a agua triste, a agua lenta. 
Sem horizontes, sem Sol claro, sem tormenta, 
Quebrar as azas contra o nevoeiro, 
Ser a energia que nada tenta ? . . . 
Mas, para além 
— Para além d’esta nevoa que tu sondas 
Com olhos d'avidez — 
Para além ha o mar, o mar das ondas, 
E sobre o mar o vento alegre, a embriaguez 
D ir sempre mais além ! 
O mar doido, o mar forte, o mar aberto 
A todos os caminhos. . . 
O mar livre, o mar só como um deserto, 
O mar do sonho, das sereias e golphinhos, 
O mar tranquillo, o mar em furia, o mar incerto ! 
E, pelo mar, 
Vão os navios, vac o mundo, anciosamente : 
De Sul a Norte, d’Oriente a Occidente, 
Vão os navios, palpitantes, a arquejar 
Cheios de gente ! 
Vão tão velozes, tão frementes d’anciedadc 
Que sob os novos céos e os novos soes 
Que os illuminam no seu rumo, 
Ninguém lembra com magua e com saudade 
A luz acolhedora dos pharoes, 
Os portos ébrios de barulho e fumo. . . 
Ah ! esses portos ruidosos, a floresta 
Das chaminés, das velas e dos mastros, 
Os marujos em faina, o carregar dos lastros, 
As bandeiras batendo ao vento, a febre, a festa 
Das naus que sáem do estaleiro - e logo aproam 
Ao Céo azul onde as gaivotas vôam. . . 
N’elles a vida 
E urna eterna, infatigada espr ança ! 
N elles morre esta agua entorpecida 
Na vaga quente e forte 
Sobre a qual parte, sobre a qual se lança 
Para o desejo, para a gloria ou paia a morte — 
Toda a alma sedenta de mais vida ! 
E um dia, breve, 
Um dia hei-de partir de lá, tambem, 
Partir d' animo leve 
Para o Sol, para o mar e para além 
D este silencio que me prende a alma inteira, 
Horas perdidas, junto ao caes. 
Hei-de partir sorrindo, embora leve 
Nos meus olhos, em fogo a tristeza dos teus, 
E embora fiques só, minha illusão primeira, 
Entre a soturna somnolencia dos canaes 
E entre a névoa a acenar-me o teu ultimo adeus. . .
	        
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