HELO MUNDO...
Sobre o cadáver ainda
quente de seu pae, a filha
de Hadji-Sadik jurou que
náo daria o nome de esposo senão áquelle que
vingasse o assassinio do velho arabe.
Ora, a filha de Hadji-Sadik era a mais bella
das filhas de Deus que léem pelo Koran.
Os poetas cantavam nas suas romanças os
olhos de corça, o eolio de cysne, a graça de
panthera e o cabello negro como a treva d’on-
de Allah virou os mundos, que tudo isso havia
na figura de Zaira, a filha de Hadji-Sadik.
Hadji-Sadik, o valente, fôra assassinado trai
çoeiramente ao passar junto d’um
vallado, ao galope da sua egua
preta, pela azagaia de Ahmed-Jus-
suf, o emir seu rival. D’ahi por
deante, era debalde que os mais
guapos cavalleiros arabes vinham
offerecer o seu amor a Zaira. A
formosa musulmana exigia a cabe
ça d’Ahmed-Jussuf. Deante dessa
exigencia os cavallei
ros enamorados reti
ravam-se, sem ousar
ferir o poderoso che
fe, o mais temido de
todos elles. E assim,
ella definhava-se na
sêde de vingança, sem
sentir na sua alma
mais do que a recor
dação de seu pae e o
juramento feito sobre
esse cadaver querido.
Ella definhava-se, por
que para as filhas do
sol a vida é o amor e
porque a vingança é
como o terremoto que
antes de derruir os
edificios, despedaça
em fendas a terra on
de se nutre.
Mas um dia, em que
ella, do balcão da sua
torre, assistia tran
quilla ao pôr do sol,
um moço cavalleiro approximou-se da gelosia e pediu-
lhe agua. Elle era alto e esbelto. Por baixo do seu
turbante cahiam-lhe sobre os hombros os anneis do
cabello negro e fino. A sua barba ondeada dava a
expressão d’um forte ao rosto de contornos brandos,
tishado pelo sol do meio dia. Vinha cheio de pó de
pois d’um dia inteiro de caçada aos lobos e aos java
lis; e os arreios da sua eguaalazan vinham brancos de
espuma das longas correrias. Havia em tudo aquillo
como um perfume de guerra que embriaga as ardentes
filhas do Propheta.
Zaira trouxe-lhe agua n’uma taça de ouro
esculpida; e quando ao entregar-lh’a, os seus
dedos encontraram os dedos do cavalleiro,
sentiu um frémito egual ao que percorre o
dorso dos tigres quando a lua lhes vem acor
dar no sangue as tentações nervosas do amor.
E ao mesmo tempo os olhos do cavalleiro na
davam em fluidos de ternura.
E’ assim que o amor irrompe nos corações
dos arabes.
Por muitos dias e por muitos mezes, o moço
caçador, ao pôr do sol, encaminhava a sua
egua para alli, certo de que o esperava á ge
losia a sua formosa Zaira. E n’aquella convi
vencia diurna o amor foi
crescendo em ambos.
Quando seis vezes a lua
os
m a mascara
sem ella, sempre
mesmo enigma...
fizera a sua evolução completa, depois que os
olhos do cavalleiro se confundiram com
da bella musulmana, ella perguntou-lhe:
— Quem és tu ?
— Eu sou Mahmed-ben-Jussuff.
— E eu sou a filha de Hadji-Sadik.
Mas era já tarde. No dia seguinte o filho do
Emir não voltou, nem no outro, nem no outro.
E Zaira, que tinha recuperado a vida e a bel
leza na satisfaeção d’aquelle amor tão grande
que chegara a fazel-a esquecer o seu
juramento de vingança, sentiu de no 7
vo a sua alma trespassada pela aza
gaia que entrara no coração de seu
pae.
Sete dias tinham passado, e sete
noites, quando á hora de pôr o sol,
a estrella de Granada viu assomar á
figura do seu bem ama
do, mas pallido e triste
como nunca o vira.
N’aquellas duas almas
havia-se travado uma lu
cía tremenda de que os
corpos sahiam quebranta
dos : a vingança e o amor
disputavam fibra a fibra
aquelles corações, co
mo um combate terrí
vel entre Allah e o
anjo Eblis. Quem ven
ceria na iucta?
Dois mezes depois
celebravam-se as bo
das da filha de Hadji-
Sadik com o filho de
Ahmed-Jussuff.
Ella teria esquecido
o juramento antigo? O amor
da mulher vencera o amor
da filha ?
Zaira, a dos cabellos ne
gros, seria perjura e ficaria
inulto o assassinato de Ha
dji-Sadik? Estas perguntas
corriam de bocea em bocea,
e os velhos abanavam a ca
beça, agoirando mal da festa
a que o Emir não assistia.
No emtanto, os mais bri
lhantes cavalleiros das Hes-
panhas vieram ao convite de
Mahmed, e fizeram-se tor
neios em honra de Zaira.
Menestreis mouros canta
vam ao som dos arbis as
perfeições da noiva que elles chamavam a Es
trella de Granada. Depois dos torneios houve
um grande banquete ainda acompanhado dos
arrabis e das cytharas.
No meio do banquete um escravo negro en
trou, trazendo na mão uma salva de prata de
riquíssimos lavores coberta de um panno ver
melho. Mehmed-ben-Jussuff tomou-lh’a das
mãos e elle mesmo, ajoelhando, veio apresen-
tal-a a sua esposa. A filha de Hadji-Sadik er
gueu-se, e arrancando o panno côr de sangue,
levantou da salva, segurando-a pelos cabellos,
a cabeça de Ahmed-Jussuff.
CYRILLO MACHADO.