Full text: 2.1923=Nr. 1 (1923000201)

HELO MUNDO... 
Sobre o cadáver ainda 
quente de seu pae, a filha 
de Hadji-Sadik jurou que 
náo daria o nome de esposo senão áquelle que 
vingasse o assassinio do velho arabe. 
Ora, a filha de Hadji-Sadik era a mais bella 
das filhas de Deus que léem pelo Koran. 
Os poetas cantavam nas suas romanças os 
olhos de corça, o eolio de cysne, a graça de 
panthera e o cabello negro como a treva d’on- 
de Allah virou os mundos, que tudo isso havia 
na figura de Zaira, a filha de Hadji-Sadik. 
Hadji-Sadik, o valente, fôra assassinado trai 
çoeiramente ao passar junto d’um 
vallado, ao galope da sua egua 
preta, pela azagaia de Ahmed-Jus- 
suf, o emir seu rival. D’ahi por 
deante, era debalde que os mais 
guapos cavalleiros arabes vinham 
offerecer o seu amor a Zaira. A 
formosa musulmana exigia a cabe 
ça d’Ahmed-Jussuf. Deante dessa 
exigencia os cavallei 
ros enamorados reti 
ravam-se, sem ousar 
ferir o poderoso che 
fe, o mais temido de 
todos elles. E assim, 
ella definhava-se na 
sêde de vingança, sem 
sentir na sua alma 
mais do que a recor 
dação de seu pae e o 
juramento feito sobre 
esse cadaver querido. 
Ella definhava-se, por 
que para as filhas do 
sol a vida é o amor e 
porque a vingança é 
como o terremoto que 
antes de derruir os 
edificios, despedaça 
em fendas a terra on 
de se nutre. 
Mas um dia, em que 
ella, do balcão da sua 
torre, assistia tran 
quilla ao pôr do sol, 
um moço cavalleiro approximou-se da gelosia e pediu- 
lhe agua. Elle era alto e esbelto. Por baixo do seu 
turbante cahiam-lhe sobre os hombros os anneis do 
cabello negro e fino. A sua barba ondeada dava a 
expressão d’um forte ao rosto de contornos brandos, 
tishado pelo sol do meio dia. Vinha cheio de pó de 
pois d’um dia inteiro de caçada aos lobos e aos java 
lis; e os arreios da sua eguaalazan vinham brancos de 
espuma das longas correrias. Havia em tudo aquillo 
como um perfume de guerra que embriaga as ardentes 
filhas do Propheta. 
Zaira trouxe-lhe agua n’uma taça de ouro 
esculpida; e quando ao entregar-lh’a, os seus 
dedos encontraram os dedos do cavalleiro, 
sentiu um frémito egual ao que percorre o 
dorso dos tigres quando a lua lhes vem acor 
dar no sangue as tentações nervosas do amor. 
E ao mesmo tempo os olhos do cavalleiro na 
davam em fluidos de ternura. 
E’ assim que o amor irrompe nos corações 
dos arabes. 
Por muitos dias e por muitos mezes, o moço 
caçador, ao pôr do sol, encaminhava a sua 
egua para alli, certo de que o esperava á ge 
losia a sua formosa Zaira. E n’aquella convi 
vencia diurna o amor foi 
crescendo em ambos. 
Quando seis vezes a lua 
os 
m a mascara 
sem ella, sempre 
mesmo enigma... 
fizera a sua evolução completa, depois que os 
olhos do cavalleiro se confundiram com 
da bella musulmana, ella perguntou-lhe: 
— Quem és tu ? 
— Eu sou Mahmed-ben-Jussuff. 
— E eu sou a filha de Hadji-Sadik. 
Mas era já tarde. No dia seguinte o filho do 
Emir não voltou, nem no outro, nem no outro. 
E Zaira, que tinha recuperado a vida e a bel 
leza na satisfaeção d’aquelle amor tão grande 
que chegara a fazel-a esquecer o seu 
juramento de vingança, sentiu de no 7 
vo a sua alma trespassada pela aza 
gaia que entrara no coração de seu 
pae. 
Sete dias tinham passado, e sete 
noites, quando á hora de pôr o sol, 
a estrella de Granada viu assomar á 
figura do seu bem ama 
do, mas pallido e triste 
como nunca o vira. 
N’aquellas duas almas 
havia-se travado uma lu 
cía tremenda de que os 
corpos sahiam quebranta 
dos : a vingança e o amor 
disputavam fibra a fibra 
aquelles corações, co 
mo um combate terrí 
vel entre Allah e o 
anjo Eblis. Quem ven 
ceria na iucta? 
Dois mezes depois 
celebravam-se as bo 
das da filha de Hadji- 
Sadik com o filho de 
Ahmed-Jussuff. 
Ella teria esquecido 
o juramento antigo? O amor 
da mulher vencera o amor 
da filha ? 
Zaira, a dos cabellos ne 
gros, seria perjura e ficaria 
inulto o assassinato de Ha 
dji-Sadik? Estas perguntas 
corriam de bocea em bocea, 
e os velhos abanavam a ca 
beça, agoirando mal da festa 
a que o Emir não assistia. 
No emtanto, os mais bri 
lhantes cavalleiros das Hes- 
panhas vieram ao convite de 
Mahmed, e fizeram-se tor 
neios em honra de Zaira. 
Menestreis mouros canta 
vam ao som dos arbis as 
perfeições da noiva que elles chamavam a Es 
trella de Granada. Depois dos torneios houve 
um grande banquete ainda acompanhado dos 
arrabis e das cytharas. 
No meio do banquete um escravo negro en 
trou, trazendo na mão uma salva de prata de 
riquíssimos lavores coberta de um panno ver 
melho. Mehmed-ben-Jussuff tomou-lh’a das 
mãos e elle mesmo, ajoelhando, veio apresen- 
tal-a a sua esposa. A filha de Hadji-Sadik er 
gueu-se, e arrancando o panno côr de sangue, 
levantou da salva, segurando-a pelos cabellos, 
a cabeça de Ahmed-Jussuff. 
CYRILLO MACHADO.
	        
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