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PELO MUNDO...
lante; contemplou a noite, lá fóra. Alguma
coisa semelhante ao seu antigo sorriso altivo,
esboçou-ise em sua physionomia, emquanto
olhava e escutava.
— Eis, pois, a que estou reduzida, disse, a
•meia voz, em tom amargo. Deveria ter sido
rainha e governar com um sceptro. Etoco mi
nha figura cercada de esplendor, arrebatando
applausos a cada passo, de todo o universo.
Pobre ambição! Viveu tanto tempo insaciada,
insatisfeita, que não surprehende o seu des
animo. Eis o que porá fim a tudO'.
Falando, Lady Lesterham tirou de seu cor
pete um vidrinho contendo um liquido espesso
e incolor, que expoz á luz. Depois, atravessou
a sala e fechou a porta á chave.
Estou tão cansada! Si o momento de aca
bar comtudo não tivesse chegado, creio 1 que o
lamentaria hoje. Quando a gente se debate co
rneo eu o fiz, e se perde a partida como a perdi,
não ha misericordia possível. Não tenho mais
razão de viver; luctei até o ultimo instante;
deveria sentir tristeza, porque tudo isso é bem
amargo. Pensar que, depois de ter combatido,
luctado, intrigado, conspirado dia e noite, mi
nha única recompensa é... a morte! E agora,
ó morte! Estamos frente á frente!
Arrancou a rolha do vidrinho com os den
tes e misturou <o eonteu’do ao vinho do copo.
Sentou-se e fitou o veneno, com ar sonhados
No relogio soàra m dez .pancadas.
Temia-te outr'ora, ó morte! Por momen
tos, quando estava de cama, abatida e enfer
ma, pensava em ti e afastava-me, com um
terror sem nome, d© teu contacto /viscoso e ge
lado. Mas tenho precisão de ti agora. Sau’do-
te como um hospede esperado; és tudo que
ainda posso amar. Sonhos desfeitos, infortu
nios sombrio's, diluvios de lagrimas, gemidos
de dôr, noite infinita do desespero cégo e so
litario, estou liberta de vós para sempre. Vem,
morte, toma-me pela mão, acaricia-me com tua
bocea, faz-me rir comtigo; sou tua, só tua.
Approximou-se, então, do copo, com a phy
sionomia contrahida por horrível soffrimento e
estremeceu violentamente da cabeça aos pés.
De repente, uma idéa atravessou-lhe o espi
rito; ajoelhou-se para orar. Mas seus labios
permaneceram gelados. Nada tinha a dizer. Na
sua angustia, abaixou o rosto e poz-se a ge
mer. Após alguns instantes, reergueu-se com
trabalho, agarrou o copo e levou-o aos labios.
Antes de provar, entretanto, recomeçou a tre
mer violentamente, e, /«com um grito selva
gem de desespero, lançou-o ao soalho, onde
elle se espatifou.
— Não posso; pensava que seria tão fácil,
■suspirou, agarrando-se a um canto da cha
miné. Estou á beira do abysmo, olho o fundo,
ma>s as trevas me apavoram. Não ouso, não
ouso, tenho medo. Não quero morrer. Preciso
de tempo, de tempo para reflectir. Quero ain
da viver um pouco, ainda um dia, uma hora.
Ha tanto tempo que não conto sinão com-
migo. Posso continuar... sim, vou partir im-
mediatamente...
Arrastou-ise até á janella, donde olhou a es
curidão nocturna. Um carro subia a alameda
a galope. Ella reconheceu a voz cheia de an-
ciedade de Sir John, que excitam o cocheiro.
Pouco depois, uma violenta campainhada soou.
Elles estavam de volta.
O quarto pareceu girar ao redor. Suas per
nas fraquejaram. Sentiu-se desfallecer, incapaz
de qualquer reacção. Teve vagamente con
sciencia de que estendia o braço para agarrar
alguma coisa que a impedia de cair. Depois,
estendeu-se no soalho, como uma massa. Deu
se oonta do que succedia, mas não tinha for
ças para fazer qualquer movimento. Num so
nho obscuro, ouviu gritos; poude mesmo dis
tinguir a voz de Sir John, que pronunciava
seu nome com uma entonação feroz, que nada
tinha de humano; percebeu um ruido de pas
sos que se precipitavam pela escada, e per
corriam os differentes aposentos.
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I
.
p *
A
O presidente da Republica Argentina exercendo o di
reito de voto, nas eleições para senador realizadas
Ultimamente.
O Dr. Marcelo Alvear, ha pouco tempo dispoz-se a exercer
o direito eleitoral de cidadão. Nesse dia, desceu do seu au
tomóvel á porta do collegio eleitoral, penetrou no recinto,
e, simplesmente, sem titubear, depositou seu voto na urna.
Minutos depois, despediu-se, sorrindo, dos cidadãos que
compunham a mesa, e desappareceu, sem deixar o menor
indicio sobre qual seria o candidato de sua sympathia.
Tentaram fazer girar a maçaneta da porta;
um minuto depois, soou um appello:
— Lucy, Lucy, em nome de Deus, abra!
Lady Lesterham ouviu-o confusamente. Num
esforço supremo, tão inconsciente quão irre
primível, ergueu-se sobre um cotovello, e di
rigiu seu olhar para a entrada, emquanto sua
cabeça ia e vinha como um pendulo de re-
logio. A porta abriu-se com um estalido de
madeira partida, e, ao mesmo tempo, ella tom
bou sem vida.
Sir John e Radford lançaram-se para o in
terior e ajoelharam-se a seu lado, emquanto
os creados, attrahidos pelo ruido, mantinham-
se no limiar, pallidos, aterrados.’
Radford foi o primeiro a recobrar a pala
vra. Com tvioz solemne, disse:
— Chegámos, demasiado tarde, Sir John. La
dy Lesterham está morta!
XXVI
so»
No solar, as vozes são surdas e os passos
abafados E’ o dia immediato á catastrophe.
Os creados que se achavam na bibliotheca, du
rante a noite tragica, espalharam rapidamen
te a no.ticia por toda a casa. Lady Lesterham,
máo grado sua frieza altiva, era, todavia, uma
boa senhora, que tivera .sempre, mesmo em
seus caprichos, uma palavra de. sympathia ou
de affeição, que fazia esquecer seus peiores
momentos de aspereza. Agora, está deitada lá
em cima, morta, com uma coroa das ultimas
flores do verão extincto posta sobre o peito.
{Continúa)