Full text: 2.1923=Nr. 4 (1923000204)

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PELO MUNDO... 
lante; contemplou a noite, lá fóra. Alguma 
coisa semelhante ao seu antigo sorriso altivo, 
esboçou-ise em sua physionomia, emquanto 
olhava e escutava. 
— Eis, pois, a que estou reduzida, disse, a 
•meia voz, em tom amargo. Deveria ter sido 
rainha e governar com um sceptro. Etoco mi 
nha figura cercada de esplendor, arrebatando 
applausos a cada passo, de todo o universo. 
Pobre ambição! Viveu tanto tempo insaciada, 
insatisfeita, que não surprehende o seu des 
animo. Eis o que porá fim a tudO'. 
Falando, Lady Lesterham tirou de seu cor 
pete um vidrinho contendo um liquido espesso 
e incolor, que expoz á luz. Depois, atravessou 
a sala e fechou a porta á chave. 
Estou tão cansada! Si o momento de aca 
bar comtudo não tivesse chegado, creio 1 que o 
lamentaria hoje. Quando a gente se debate co 
rneo eu o fiz, e se perde a partida como a perdi, 
não ha misericordia possível. Não tenho mais 
razão de viver; luctei até o ultimo instante; 
deveria sentir tristeza, porque tudo isso é bem 
amargo. Pensar que, depois de ter combatido, 
luctado, intrigado, conspirado dia e noite, mi 
nha única recompensa é... a morte! E agora, 
ó morte! Estamos frente á frente! 
Arrancou a rolha do vidrinho com os den 
tes e misturou <o eonteu’do ao vinho do copo. 
Sentou-se e fitou o veneno, com ar sonhados 
No relogio soàra m dez .pancadas. 
Temia-te outr'ora, ó morte! Por momen 
tos, quando estava de cama, abatida e enfer 
ma, pensava em ti e afastava-me, com um 
terror sem nome, d© teu contacto /viscoso e ge 
lado. Mas tenho precisão de ti agora. Sau’do- 
te como um hospede esperado; és tudo que 
ainda posso amar. Sonhos desfeitos, infortu 
nios sombrio's, diluvios de lagrimas, gemidos 
de dôr, noite infinita do desespero cégo e so 
litario, estou liberta de vós para sempre. Vem, 
morte, toma-me pela mão, acaricia-me com tua 
bocea, faz-me rir comtigo; sou tua, só tua. 
Approximou-se, então, do copo, com a phy 
sionomia contrahida por horrível soffrimento e 
estremeceu violentamente da cabeça aos pés. 
De repente, uma idéa atravessou-lhe o espi 
rito; ajoelhou-se para orar. Mas seus labios 
permaneceram gelados. Nada tinha a dizer. Na 
sua angustia, abaixou o rosto e poz-se a ge 
mer. Após alguns instantes, reergueu-se com 
trabalho, agarrou o copo e levou-o aos labios. 
Antes de provar, entretanto, recomeçou a tre 
mer violentamente, e, /«com um grito selva 
gem de desespero, lançou-o ao soalho, onde 
elle se espatifou. 
— Não posso; pensava que seria tão fácil, 
■suspirou, agarrando-se a um canto da cha 
miné. Estou á beira do abysmo, olho o fundo, 
ma>s as trevas me apavoram. Não ouso, não 
ouso, tenho medo. Não quero morrer. Preciso 
de tempo, de tempo para reflectir. Quero ain 
da viver um pouco, ainda um dia, uma hora. 
Ha tanto tempo que não conto sinão com- 
migo. Posso continuar... sim, vou partir im- 
mediatamente... 
Arrastou-ise até á janella, donde olhou a es 
curidão nocturna. Um carro subia a alameda 
a galope. Ella reconheceu a voz cheia de an- 
ciedade de Sir John, que excitam o cocheiro. 
Pouco depois, uma violenta campainhada soou. 
Elles estavam de volta. 
O quarto pareceu girar ao redor. Suas per 
nas fraquejaram. Sentiu-se desfallecer, incapaz 
de qualquer reacção. Teve vagamente con 
sciencia de que estendia o braço para agarrar 
alguma coisa que a impedia de cair. Depois, 
estendeu-se no soalho, como uma massa. Deu 
se oonta do que succedia, mas não tinha for 
ças para fazer qualquer movimento. Num so 
nho obscuro, ouviu gritos; poude mesmo dis 
tinguir a voz de Sir John, que pronunciava 
seu nome com uma entonação feroz, que nada 
tinha de humano; percebeu um ruido de pas 
sos que se precipitavam pela escada, e per 
corriam os differentes aposentos. 
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I 
. 
p * 
A 
O presidente da Republica Argentina exercendo o di 
reito de voto, nas eleições para senador realizadas 
Ultimamente. 
O Dr. Marcelo Alvear, ha pouco tempo dispoz-se a exercer 
o direito eleitoral de cidadão. Nesse dia, desceu do seu au 
tomóvel á porta do collegio eleitoral, penetrou no recinto, 
e, simplesmente, sem titubear, depositou seu voto na urna. 
Minutos depois, despediu-se, sorrindo, dos cidadãos que 
compunham a mesa, e desappareceu, sem deixar o menor 
indicio sobre qual seria o candidato de sua sympathia. 
Tentaram fazer girar a maçaneta da porta; 
um minuto depois, soou um appello: 
— Lucy, Lucy, em nome de Deus, abra! 
Lady Lesterham ouviu-o confusamente. Num 
esforço supremo, tão inconsciente quão irre 
primível, ergueu-se sobre um cotovello, e di 
rigiu seu olhar para a entrada, emquanto sua 
cabeça ia e vinha como um pendulo de re- 
logio. A porta abriu-se com um estalido de 
madeira partida, e, ao mesmo tempo, ella tom 
bou sem vida. 
Sir John e Radford lançaram-se para o in 
terior e ajoelharam-se a seu lado, emquanto 
os creados, attrahidos pelo ruido, mantinham- 
se no limiar, pallidos, aterrados.’ 
Radford foi o primeiro a recobrar a pala 
vra. Com tvioz solemne, disse: 
— Chegámos, demasiado tarde, Sir John. La 
dy Lesterham está morta! 
XXVI 
so» 
No solar, as vozes são surdas e os passos 
abafados E’ o dia immediato á catastrophe. 
Os creados que se achavam na bibliotheca, du 
rante a noite tragica, espalharam rapidamen 
te a no.ticia por toda a casa. Lady Lesterham, 
máo grado sua frieza altiva, era, todavia, uma 
boa senhora, que tivera .sempre, mesmo em 
seus caprichos, uma palavra de. sympathia ou 
de affeição, que fazia esquecer seus peiores 
momentos de aspereza. Agora, está deitada lá 
em cima, morta, com uma coroa das ultimas 
flores do verão extincto posta sobre o peito. 
{Continúa)
	        
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